Eu acordei fazendo uma
careta. Sei, pois é a primeira coisa que eu faço todas as manhãs, já que
desperto com a maldita dor no estômago. O que eu tenho no estômago? Não sei. E
não vou ao médico exatamente pra não saber. Mas ela passa rápido. Assim que eu
levanto, em uns 10 minutos, estou bem novamente. Sei que isso não é desculpa
pra não me tratar, mas sinceramente eu não estou ligando.
Levantei-me e curvei o
corpo na pequena pia que fica ao lado da cama. Joguei água no rosto e encarei o
espelho. Rugas. Várias linhas no rosto. Na cabeça, parcos cabelos grisalhos nas
têmporas, dando espaço pra a careca reluzente. 52 primaveras, dizia a minha
vizinha. 52 malditas primaveras eu carrego no corpo. Mas ele ainda funciona.
Vesti a calça e a
camisa de botão. Abri um pouco a janela e vi o sol iluminar tudo. As pessoas,
na rua, com caras mal humoradas, andavam apressadas. Sai e tranquei a porta.
Cumpriria minha rotina andando dois quarteirões até a padaria onde eu sempre
tomo café. No caminho cumprimentei e fui cumprimentado pelas mesmas pessoas de
todos os dias. Incluindo as mesmas que eu sequer sabia quem eram.
Quando cheguei,
passando o lenço na testa pra secar o suor, o cheiro de pão quente e fresco
bateu em mim. Como sempre, a padaria estava cheia. Fui até minha mesa de
sempre, do lado da janela, no fundo. A moça que me atende, com sua vozinha chata
de gato, estava mal humorada hoje. Mascava um chiclete como se estivesse
comendo merda e anotou meu pedido. Duas torradas e uma xícara de café bem
preto. Talvez você que está lendo já tenha ficado com vontade de beber uma
xícara de café quentinha. Mas se você provasse o café daqui, iria preferir
beber seu próprio vômito. É o pior café da cidade. Parece mais lavagem pra
porcos. E não adianta eu pedir ele forte. Vai vir parecendo chá preto, sempre.
E as torradas sempre vem mais duras que a madeira da mesa em que agora apoio os
braços.
Então você encosta na
cadeira aí onde está e se pergunta: “Que porra esse velho tá fazendo nesse
lugar de comida tão ruim?” E eu lhe respondo: “Por qual outra razão um homem
faz sacrifícios nessa vida senão por uma mulher?”
Sim, meus amigos. Uma
mulher. E lá vem ela. Toda manhã eu chego 10 minutos antes. Eu, do lugar em que
sento, posso ver ela dobrar a esquina e aparecer. Acompanho-a com os olhos até
a porta da padaria e quando ela atravessa o tapete de boas-vindas, sinto seu
perfume, como se ele corresse pra mim.
Não, eu não sei o nome
dela. Nem sei a idade. Faz cinco dias que eu a “conheço”. Acidentalmente eu a
encontrei na primeira vez que vim pra esse inferno gastronômico. A mãe do dono
da padaria no quarteirão da minha casa havia falecido e ele, naquela manhã,
fechara as portas do estabelecimento. Claro que fiquei irado. Era o melhor café
que eu já havia tomado, mas o diabo da velha teve que morrer logo naquela
manhã. Então eu vim pra essa espelunca e encontrei aquela mulher maravilhosa.
Desde então eu suporto o fel que servem aqui chamando de café.
Ela é loira, já com
cabelos brancos aparecendo. Olhos grandes e castanhos. Uma barriga saliente,
mas culotes sensacionais. Já imaginei várias vezes aquelas ancas cavalgando em
mim. Hoje ela estava em um vestido vermelho, com lantejoulas nas mangas e na
região do decote, cujos peitos quase saltavam pra a mesa.
Ela sentava no outro
extremo, praticamente de frente pra mim. E já notara meus olhares curiosos. Uma
única vez me sorriu. O resto do tempo apenas me ignorava. Tirava sempre da
bolsa de crochê um celular e ficava mexendo nele sem parar.
Se eu tinha coragem de
me aproximar? Tinha nada. Quando criança eu derrubava bezerros na mão com meu
pai. Hoje eu tenho é medo que essa mulher me derrube. Ficar apaixonado é uma
merda mesmo. Mesmo na minha idade.da única vez que eu tomei coragem, quando me
levantei, uma outra mulher apareceu do lado de fora a chamando. Aí perdi minha
chance. Mas hoje é o dia. Ah se é! Percebi que ela só pegara o celular uma vez
e guardara de volta na bolsa. Ela apenas olhava o relógio na parede, distraída.
Nem tomei o café pra
não ficar com aquilo no hálito e espantá-la quando abrisse a boca. Fiz uma
pequena oração judaica que minha mãe me ensinara e tomei fôlego pra me
levantar. Mas o ar que eu bebera só serviu pra suportar o baque da minha bunda
na cadeira de novo.
Pela porta entrou um
homem, mais velho que eu, com um terno cinza amarrotado e se dirigiu até a mesa
dela. Meu coração parecia que ia sair pela boca, nariz, qualquer buraco do meu
corpo. Então meu corpo todo tremeu de raiva quando o cidadão se aproximou e deu
um beijo na sua boca.
Foi só um tiro.
Eu peguei a arma na
minha cintura, que eu uso pra proteção própria desde que me assaltaram, e
apontei pra a cabeça dela. Foi certeiro. O sangue espirrou no terno cinza do
homem. Atravessou a cabeça dela e quebrou o vidro da janela. Começou um
tumulto. Mulheres gritavam e homens tentavam protegê-las. Eu fui me aproximando
e o homem do lado dela, molhado do líquido viscoso e vermelho, olhava pra mim
com um olhar covarde que me deu ódio. Ele se afastou e saiu correndo pela
porta. Eu descarreguei o cartucho no corpo sem vida daquela mulher até ver seu
sangue tingir o carpete com a cor da minha vingança.
Mas isso foi na minha
cabeça.
Eu realmente coloquei a
mão na arma. Ele sentou-se e os dois sorriam e comiam juntos com muita
felicidade. A raiva dentro de mim aumentava. Então eu olhei para a xícara de
café. E olhei da xícara para ela, sorrindo com seu parceiro. A raiva explodiu
em uma grande gargalhada que assustou as pessoas no local. A moça que me atendia
veio rapidamente perguntar se que queria alguma coisa mais.
- Quero. Quero que você
enfie esse café goela abaixo. Pois dessa merda em formato líquido eu não tomo
mais.
E sai. Feliz, pois
agora eu voltaria a experimentar o café mais gostoso dessa cidade bem pertinho
de casa.
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