A Fome (+18)




Eu a amei com algo muito maior que o próprio amor. Não havia definição. Eu necessitava dela mais que qualquer coisa no mundo. Era maior que paixão, maior que possessão, maior que obsessão. Era, e assim eu passei a chamar, fome. 

A conheci numa palestra sobre mídias sociais. Eu, engenheiro em aplicativos de computação. Ela, web designer. Aqueles cabelos vermelhos e aquela tatuagem nas costas logo me chamaram a atenção. Era amiga de uma amiga minha, então a apresentação foi fácil e a atração foi rápida. No dia seguinte eu e ela estávamos tomando café depois de uma sessão de cinema. Tínhamos muito em comum e a conversa fluía naturalmente, com interesses que ambos compartilhavam. Passamos a nos encontrar com mais frequência. Nos sentíamos adolescentes apaixonados. Ríamos muito juntos e a cada vez que ela parecia se irritar com algo que eu fazia, prontamente eu tentava consertar a situação. A enchi de presentes, de mimos e também inflei seu ego. Então eu vi uma fome dentro de mim crescer e se tornar insaciável.
Logo dei um jeito de morarmos juntos. Ela deixou a casa da mãe e passamos a desfrutar de um apartamento só nosso, com vista para a praia. Eu a convenci a deixar o emprego, já que meu salário sustentava tranquilamente os dois e, como eu trabalhava em casa, teríamos mais tempo juntos. Claro que ela adorou a ideia. Eu, mais ainda. Nossos dias passaram a ser a realização de um sonho para mim. Deitava e acordava com ela do meu lado. Seu cheiro, seu gosto, sua presença. Tudo nela me encantava. Mas eu comecei a ver que isso não era suficiente. Transávamos todos os dias, quase todo o tempo. Ela era fogosa e eu, um tarado. Precisava sentir sua pele, seu gosto, seu interior úmido e macio. Batizamos praticamente todos os cômodos e móveis do apartamento. Ela era incansável, mas eu era mais ainda. Por vezes ela dormiu em cima de mim de exaustão, no meio da transa, mas eu não me importava. A tinha ali em meus braços. Pra sempre. 

Ela, percebendo que havia abandonado as amigas, resolveu, um dia, sair com elas. Não gostei. Precisava dela aqui. O tempo todo, do meu lado. Tivemos uma discussão quando ela voltou. Nessa noite dormimos brigados e distantes na mesma cama. E eu me tornei ranzinza, irritável, inconstante. Ela evitava sair com as amigas. Mesmo assim eu ainda estava chateado. Algo ruim dentro de mim me impedia de entender. Ou não. Talvez eu estivesse certo. Ela era minha. Tudo nela era meu. Tudo. Essa era minha fome. Fome dela. Tanta fome que, quando ela não estava, eu procurava seus vestígios no apartamento. Sim, eu lembro da primeira vez. Um dia, antes de sair, ela cuspiu na pia do banheiro e esqueceu de abrir a torneira. Cuspiu pelo nojo que teve ao ver algo asqueroso na TV. Depois que ela saiu, a fim de fazer umas compras para sua vaidade, eu comecei a sentir algo em mim muito estranho. Senti muita falta dela. Uma agonia tomou conta de mim. Eu respirei fundo várias vezes buscando o cheiro dela. Fui até o guarda-roupa e cheirei as roupas, calcinhas, meias. Mas nada daquilo me satisfazia. Então lembrei do banheiro. Corri para lá e ainda havia vestígios de sua saliva na pia, escorrendo. Sem pensar duas vezes eu passei o dedo e coloquei na boca. A sensação foi como de um alimento muito gostoso caindo no estômago depois de passar um dia inteiro de fome. Depois desse dia, eu tentei saciar minha fome dela de várias formas.

Ela começou a me negar sexo por algumas noites. Estava cansada, mas eu nunca estava. Então, já que ela me negava prazer dessa forma, eu procurava outro jeito. Comecei a praticar scat. Deixava-a na cama à noite e ia até o banheiro procurar as secreções dela no papel higiênico. Descrever o prazer eu não consigo e creio até que você que está lendo se enojou com isso. Matava minha fome dela dessa forma por várias noites. Depois de alguns dias ela cedeu. Voltamos a transar loucamente e a convenci de algumas coisas. Ela me deixou beber de seu sangue no período menstrual. Eu não me importava. Queria tudo que fosse dela e me excitava lhe causar prazer. Mas eu queria mais. A convenci, depois de muita apelação, a termos algumas práticas sexuais extremas, vistas como bizarras pela maioria das pessoas. Eu desejei beber a urina dela, praticar escatologia e ela deixava que eu colocasse a mão toda dentro de sua vagina. Eu queria extremos, queria entrar literalmente nela. E minha fome nunca acabava.

Ela julgou, depois de um tempo, e achei até demorado, que eu estava ficando louco. Decidiu voltar para a casa da mãe depois de me explicar que não estava mais aguentando. Me chamou de pegajoso, ciumento, louco. Que se sentia mal comigo na cama, pois eu não me contentava mais com nada. Ela então juntou umas roupas, colocou em uma mala e preparou-se para me deixar. Mas eu não iria permitir isso. A segurei pelo braço e tapei sua boca para evitar gritos. Ela se debateu bastante e não vi outro remédio senão fazê-la dormir com um golpe na nuca. 

Deixei-a na cama amarrada, desacordada e fiquei rodeando-a, andando para lá e para cá, pensando no que iria fazer. A ideia de perdê-la me deixava louco. Não podia permitir que isso acontecesse. Por vezes me ajoelhei diante dela e acariciei seu rosto. Cheirei seu cabelo, levantei possuído, quebrei algumas coisas, mas ela não acordou. Passei novamente a mão em sua pele macia, delicada, cheirosa. Desejei tanto aquela pele para mim! Encostei o nariz na sua boca e senti seu vapor delicioso. Eu não tinha muitas escolhas. Precisava dela. Precisava dela dentro de mim. Pra sempre. Então resolvi matá-la. 

Para minha surpresa, ou não, não tive muita dificuldade. Saber que jamais a perderia me deu forças para o que fiz. Cortei sua garganta e deixei seu sangue escorrer em um balde. Depois a esquartejei e nessa parte houve certa dificuldade, pois eu não tinha muita experiência em cozinhar. Nunca havia cortado um frango na vida, avalie uma pessoa. Fiz bifes, carne para mais de um mês. Peguei receitas na internet, comprei temperos caros e me fartei durante quase dois meses da minha amada. A cada garfada que eu dava em sua tenra carne me sentia realizado. Minha fome finalmente parecia estar sendo saciada. E devorei seus últimos pedaços com muito gosto.

Mas minha fome não passou. Agora, mais que nunca, eu sentia a falta dela. Ela corria em minhas veias, sim, não esqueçam do balde de sangue que eu não joguei fora. A carne dela me alimentara, me mantivera vivo, me saciara por um tempo. Mas eu ainda necessitava dela. Mas o que fazer agora? Ela já estava dentro de mim. Eu deveria estar satisfeito, mas não estava. Então eu percebi. Ela estava dentro de mim. Dentro de mim.

Me olhei no espelho. Nunca tive traços masculinos tão visíveis. Minha barba era uma negação. Eu mal a fazia de tão pouca que tinha e como demorava a crescer!  Tinha também pouco pelo nos braços e pernas. E pra ajudar, meu pomo-de-adão não era visível, apesar de eu não ser gordo. Eu tinha quase o mesmo peso da minha amada. Então tive uma ideia. Ao encarar-me no espelho eu me decidi que seria ela. Já que ela estava dentro de mim, eu poderia modificar meu corpo para parecer o máximo possível com ela. E o fiz.

Peguei todas as fotos que eu possuía dela e eram muitas, já que eu vivia fotografando-a de todos os ângulos, em todo lugar. Viajei para a Europa em busca dos melhores cirurgiões plásticos. Deixei o cabelo crescer e o tingi de vermelho. Fiz cirurgia de mudança de sexo, coloquei silicone, não muito, já que ela tinha pouco busto. Fiz cirurgia no nariz, na boca. Procurei o melhor tatuador para fazer a mesma tatuagem que ela possuía nas costas.

Três anos depois, após várias cirurgias, muita dor, tendo mudado de sexo, tendo feito até cirurgia nas cordas vocais, para que a voz ficasse o máximo possível semelhante à dela, eu me olhei no espelho mais uma vez e chorei. Ali estava ela diante de mim. Meu próprio reflexo. Meu desejo havia se tornado realidade. Minha fome chegou ao seu auge. Com uma mão apertei meus seios, os seios dela, e com a outra me masturbei num êxtase inigualável. Dentro de mim, na minha pele, nas minhas curvas, ela habitaria até o meu último dia. Nos fundimos como eu sempre quis. Agora eu tinha e eu era o corpo que mais desejei nesse mundo. E quando olhei nos meus olhos, a mesma cor dos olhos dela...eu olhei...

A realidade caiu com gosto amargo na minha boca. Os olhos eram parecidos, mas não eram os mesmos. Não era o mesmo olhar, não guardavam a mesma história. Eu não tive sua infância e nunca terei sua memória. Percebi então que o que a constituía não era seu corpo, sua aparência, mas os anos de sua existência. Todas as histórias guardadas na sua mente e que nunca iriam me pertencer. 

E fiquei ali, diante do espelho, frustrado, pois eu já não a tinha mais. Eu já não era mais ela e, agora, eu não era sequer mais eu. 

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