MEXICANA

Conto de Gustavo do Carmo



Entre lágrimas e soluços, a novela mexicana se desenrolava na televisão. A mocinha loura, de vestido florido, vaticinava com a maquiagem borrada pelo choro:

“Rodrigo Augusto: Fernando Eduardo não é seu filho!”

“O quê?!?!?!”

Espantou-se o personagem típico dessas produções do país latino, aos gritos, que foram quase abafados pela trilha sonora de suspense. A câmera por pouco não bateu em seu rosto redondo com cabelos grisalhos, topete e fino bigode no rosto:

“Fernando Eduardo é filho de Miguel Antônio”

Completou a dramática protagonista, antes de ver o marido levar a mão no peito e desmaiar na sua frente. A mãe do homem, uma senhora de cabelos exageradamente ondulados ruivos, com um coque também desproporcional, e um tapa-olho no olho direito que combinava com o tailleur violeta que usava, culpava a nora, com uma dublagem totalmente desalinhada com o movimento labial da atriz (e de todo o elenco):

“Sua desgraçada, você o matou!”.

O locutor anunciava “A seguir: cenas dos próximos capítulos”. A trilha musical brega da novela igualmente cafona era sobreposta pela voz de um jovem carioca:

— Fala sério! Que novela ridícula.

— Ridícula por quê, meu filho?

— Ah, mãe! Essas novelas, além de bregas nos figurinos, nas maquiagens  e com dublagem mal-feita, adoram inventar que alguém não é filho de quem a gente pensa. Só para segurar audiência.

— Mas essas coisas também acontecem na vida real.

— Eu sei que acontecem. Mas não com a gente.

— Você está enganado, meu filho! Essas coisas podem acontecer com todo mundo!

Esbravejou a senhora morena, aparentando uns sessenta anos.  O rapaz, já com uns trinta, fez uma brincadeira que poderia ser fatal:

— Comigo não há possibilidade nenhuma. Eu sou a cara do meu pai quando ele era novo!

Dona Dolores Aparecida ficou quieta. Pigarreou contrariada. Jorge César percebeu a saia-justa da própria mãe.

— Eu sou filho do meu pai mesmo. Não sou, mãe?

A senhora não respondeu.

— Mãe? Responde. Eu sou filho do meu pai?

Após pensar nervosamente, Dolores respondeu.

— Não. Não é. Seu pai não é o Otávio Henrique. Seu pai se chama Fábio José. Pronto. Falei.

— Ah, tá de sacanagem, mãe! Acabou a brincadeira. Disse Jorge, com um sorriso sarcástico.

— Não é brincadeira, Jorge César. É a mais pura verdade.

— Não pode ser! Eu sou a cara do meu pai! Tenho o mesmo rosto que ele, os mesmos trejeitos! Olhou-se no espelho.

— Os trejeitos você pegou com a convivência com o Otávio Henrique. Mas as suas feições físicas também são muito parecidas com as do Fábio José, seu verdadeiro pai.

As lágrimas da novela mexicana passaram para a vida real e os olhos de Jorge César, que perguntou, aos gritos:

— POR QUE NÃO ME CONTOU ANTES? POR QUE SÓ ME CONTOU DEPOIS DESTA NOVELA RIDÍCULA???

— Porque eu não tive coragem, meu filho! Só criei agora por causa do seu comentário. Respondeu, já aos prantos.

— Esperou passar uma novela mexicana quando eu já tenho mais de trinta anos. Por que não me contou na adolescência, então?

— Não ia fazer diferença. Você ia reagir do mesmo jeito.

— Eu vou embora desta casa.

— Já está mais do que na hora! Você já tem trinta e dois anos!  

— O meu pai sabe? Não o Fábio, mas o Otávio, que será sempre o meu verdadeiro pai. Perguntou, limpando as lágrimas.

— Não. Não sabe.

— E o meu suposto pai biológico? Por onde ele anda?

— Eu não sei. Ele sumiu depois que me engravidou de você. Tentei contar, mas nunca mais consegui contato.

— E a minha irmã? Se é ela é mais velha do que eu, então deve ser filha do 
outro, também. 

— Não. Ela é filha do Otávio mesmo. Eu tive você quando me separei por um breve período do seu pai. Senti saudades dele, mas com medo de ser rejeitada pelo Otávio Henrique, procurei outros homens numa boate. Encontrei um a cara do Otávio, que se chamava Fábio José. Saímos da festa direto para o motel. E então engravidei de você. Perdoa-me por não ter te contado antes!

Implorou Dolores, aos prantos, se ajoelhando aos pés do filho, que não sabia o que fazer.

Já não tinha mais as tias, que já morreram. O único tio materno que sobrou vivo há anos não tem convivência com a irmã mais velha.

Jorge César decidiu, então, procurar a sua própria irmã. Regina Mercedes já era casada e morava com o marido na Barra da Tijuca. Foi em direção à porta, abriu-a e encontrou o pai de criação, Otávio Henrique, furioso, correndo para a esposa aos gritos:

— VAGABUNDA! PIRANHA!

Indignado, Jorge César tentou defender a mãe, apesar da mágoa com ela:

— O SENHOR RESPEITE A MINHA MÃE! ELA ME ENGANOU, MAS NÃO PRECISA XINGÁ-LA!

— Ah! Então você já sabe, né?

— Que eu não sou seu filho? Já sei, sim!

— Pois é! Fomos enganados e você ainda defende essa mulher? Ela me traiu com o meu melhor amigo! Você realmente não é meu filho! É filho do Fábio José!

— Então é verdade, não é, mãe?

— Mas como você descobriu, Otávio Henrique? Perguntou Dolores.

— Recebi o telefonema de uma mulher que se dizia filha do Fábio. Queria que eu fosse falar com o pai dela, que estava muito doente. Fui ao seu encontro e descobri que ele era Fábio José, o amigo com que eu estava rompido há mais de trinta anos.

Ele me confessou que reconheceu você, numa foto na internet comigo postada numa rede social pelo Jorge, como a mulher que engravidou há trinta e dois anos. E também notou que o Jorge se parecia muito comigo também. Me pediu perdão por ter traído o seu melhor amigo. Eu o perdoei e ele morreu logo em seguida. Encerrou Otávio, com a voz embargada. Você não puxou somente a mim, Jorge. Você é a cara dele!

— Se você foi capaz de perdoar o seu amigo no leito de morte, pode me perdoar, também. Inclusive você, meu filho. Perdoem-me. Eu estou passando mal. Implorou novamente, Dolores.


— Vamos pensar. Responderam em coro Jorge César e Otávio Henrique, que saíram para afogar as mágoas no boteco da esquina, deixando Dolores Aparecida desfalecida, como uma personagem de novela mexicana.  

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