Caminhava
com a esposa, Mariana, na rua do bairro de subúrbio onde moravam. Como sequela
de um acidente de automóvel aos 17 anos, se apoia mancando em uma bengala desde
então.
O
casal passava por uma loja de eletrodomésticos de renome que tocava, num
moderno aparelho de som, em volume bem alto e quase quebrando as vidraças, um
funk bem pesado, daqueles cantados por verdadeiros marginais, que ameaçavam:
“
VÔ TREPÁ! VÔ TREPÁ! VÔ TREPÁ PARA ASSALTÁ! VÔ SIM! VÔ SIM! VÔ MATÁ! VÔ MATÁ! VÔ
MATÁ PARA ASSALTÁ! VÔ SIM! VÔ SIM!”
—
Mas que absurdo! No meio da rua, uma loja conceituada tocar uma aberração dessas!
O gerente tinha que ir preso e levar umas 500 chibatadas! Eu vou é reclamar com
alguém.
—
Ah, Astolfo, deixa pra lá! Não vai fazer escândalo! Pediu Mariana, sem sucesso.
—
Não! Não! Isso tem que parar. No meu tempo essas lojas tocavam MPB e em volume
suportável.
Astolfo
desobedeceu a esposa e, com a sua bengala, aproximou-se de uma vendedora, loura
magrinha, falando alto em seu ouvido:
—
VOCÊ PODERIA PARAR DE TOCAR ESSE FUNK INDECENTE, POR GENTILEZA?
—
OI???
—VOCÊ PODERIA PARAR DE
TOCAR ESSE FUNK INDECENTE, POR GENTILEZA?
—
NÃO OUVI!
—
PORRA! É POR ISSO QUE ESTÁ SURDA! VOCÊ PODERIA PARAR DE TOCAR ESSE FUNK
INDECENTE, POR GENTILEZA?
—
DESCULPA, SENHOR! MAS É ORDEM DO GERENTE! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
—
HEIN????
— DESCULPA, SENHOR! MAS É
ORDEM DO GERENTE! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
— AINDA NÃO OUVI!
—
É ORDEM DO GERENTE, SENHOR! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
—
ENTÃO ME CHAME O GERENTE! ESSE LIXO NÃO PODE FICAR TOCANDO, AINDA MAIS NESTA
ALTURA!
O
gerente, um mulato gordo, apareceu sem ser chamado, provavelmente já percebendo
a confusão que Astolfo aprontava. A loja inteira olhava e Mariana se
envergonhava.
—
POIS NÃO!
—
O SENHOR PODERIA, POR FAVOR, TIRAR ESSA POLUIÇÃO SONORA QUE VOCÊS CHAMAM DE
MÚSICA E COLOCAR OUTRA MELHOR, DE PREFERÊNCIA BEM BAIXA! ASSIM NINGUÉM AGUENTA
COMPRAR NESSA LOJA!
—
EU NÃO VOU TIRAR NÃO! PRIMEIRO PORQUE VOCÊ ESTÁ PEDINDO SEM EDUCAÇÃO! SEGUNDO
PORQUE O HIT DO MC CRUELZÃO E OS PYVETYS É O MAIOR SUCESSO! OLHA SÓ COMO ELA
ESTÁ CHEIA E OLHANDO PRA VOCÊ! SE NÃO QUISER COMPRAR AQUI, O PROBLEMA É SEU!
—
AH É! VOCÊ VAI VER ENTÃO! EU VOU RECLAMAR DESSA LOJA NA IMPRENSA E FAZER
CAMPANHA PARA BOICOTAREM VOCÊS! MAS ANTES EU VOU ABAIXAR ESSA MERDA!
Caminhou
do interior da loja até o som que ficava na porta e, demorando uns dez segundos
para localizar o botão, abaixou o volume do cântico, quase deixando o aparelho
mudo. Ouviu uma sonora vaia dos frequentadores da loja e dos camelôs que
vendiam produtos piratas, alguns até roubados, como celulares. Foi puxado pelo
braço por Mariana e os dois saíram da loja.
—
PUTA QUE PARIU, ASTOLFO! VOCÊ TEM QUE ME FAZER PASSAR VERGONHA! NÃO ADIANTA
RECLAMAR! A BAIXARIA CULTURAL JÁ ESTÁ IMPREGNADA NESSA GENTE DE BAIXO NÍVEL! E
SE FIZER ALGUMA COISA, AINDA CORRE O RISCO DE SER PREJUDICADO!
Astolfo
ouviu calado o sermão da esposa, embora um sentimento de revolta o corroesse
por dentro. Estava se acalmando quando foi obrigado a ouvir, em volume menor,
mas também alto, outra manifestação de mau gosto musical. Desta vez, um forró
cantado por uma moça com sotaque nordestino:
“TÔ
MOLHADINHA! MOLHADINHA! MOLHADINHA! VEM DANÇAR! VEM DANÇAR!“
Vinha
de uma carroça de sorvete de fundo de quintal. Mais precisamente de uma caixa
de som embaixo da caçamba que agora fazia o pregão do produto:
“SOOOORVETEEEE
DELÍCIAAAAA! TRÊS BOLA DE QUALQUER SABOR POR DOIS REAAAL! DELÍÍCIAAAA! “
Parou
horrorizado diante do sorveteiro - um senhor gordinho, de pele queimada de sol
com bigode e também com sotaque nordestino, diferente da voz gravada do locutor
- que o encarou e perguntou, sem desligar o som, que voltava a tocar o forró:
—
Vai um sorvete aí, moço?
— NÃO, OBRIGADO. MAS O SENHOR PODERIA
MUDAR ESSA MÚSICA E BAIXAR ESSE SOM, NÉ?
—
Astolfo! Repreendeu Mariana.
—
AH, MEU SENHOR! NÃO POSSO BAIXAR NÃO! É O MEU INSTRUMENTO DE TRABALHO. SÓ COM A
MÚSICA DO CALCINHA DE RENDA DE CHICO QUE EU ESTOU VENDENDO BEM.
—
Então, vê se aprende a falar português, né? Existe uma regra gramatical chamada
concordância de número.
Irritada
por mais um vexame provocado pelo marido, Mariana o puxou e disse para o
sorveteiro educadamente.
—
Ele não quer sorvete não. Muito obrigada! Tenha uma boa tarde!
Com Astolfo ela esbravejou:
—
Porra, Astolfo! Vai me fazer passar vergonha de novo???? Já não basta o escândalo
que você fez na loja de eletrodomésticos!?
—
Mas alguém tem que tomar uma atitude contra essa baixaria que reina aqui no
país. No meu tempo, vendedor de sorvete só tocava sininho e os sorvetes eram
bons e não esse lixo vagabundo que fazem por aí. E ainda falavam português
melhor, mesmo não tendo estudo.
Tomaram
o caminho de volta para casa, não sem antes Astolfo discutir e quase sair na
pancadaria com o auxiliar de uma van de transporte alternativo que, já não
bastasse ter parado no meio da faixa de pedestres e soltar a mensagem gravada
com o itinerário (uma favela) e uma buzina de relinche de cavalo com cantada
barata, berrou bem no seu ouvido.
—
PORRA! VAI GRITAR NO OUVIDO DA MÃE!
—
VAI TOMAR NO C...!
—
VAI VOCÊ, SEU CLANDESTINO!
—
CLANDESTINO É A SUA MÃE, SEU FILHO DA PUTA! ESSA VAN É LEGALIZADA!
—
PRA GANHAR VOTO QUALQUER VAN PIRATA É LEGALIZADA, SEU ANIMAL!
—
QUEM É ANIMAL? VEM CÁ QUE EU VOU TE
MOSTRAR QUEM É ANIMAL!
—
É ANIMAL SIM! E NÃO BASTA SER CLANDESTINO, TEM QUE FAZER BANDALHA NO TRÂNSITO,
PARANDO NO MEIO DA FAIXA DE PEDESTRE!
Já
sem dirigir a palavra ao marido, Mariana o puxou e, muda, fingiu não ouvir
Astolfo resmungar sobre todas as irregularidades do bairro, da cidade e do país durante o caminho inteiro, como dizer que antigamente havia bondes e reclamar da cena
de sexo explícito homossexual entre dois moradores de rua.
***
Já
em seu apartamento, Astolfo assistia à televisão com a esposa e os sogros. Antes
deles chegarem, já tinha mudado de canal vinte vezes e reclamado de uma
campanha beneficente pedindo doações para uma instituição de caridade para
crianças carentes. Disse sozinho que não daria porque o dinheiro seria desviado
e a miséria se perpetuaria com o combustível financeiro. Já na presença dos
sogros, ficou indignado com o que viu em um programa de auditório: um concurso
de pole dance infantil, com meninas e
um menino vestindo (?) roupas justas e cavadas.
Mudou
de canal imediatamente, para protesto indignado da sogra:
—
Pôxa, Astolfo! Eu estava vendo!
—
Ah, desculpa, Dona Marilda! Me admiro a senhora tão religiosa ficar vendo essa
baixaria, esse desrespeito com as crianças. No nosso tempo, menina brincava de
bonecas, meninos jogavam bola e participavam de programas infantis cantando boa
música ou brincando de adivinhar para onde o coelhinho vai ou fazendo uma
gincana saudável.
—
Pode ver então os seus programas. Eu e o Geraldo já vamos.
Arrependido
do gesto mal-educado com os sogros, de quem gostava tanto, Astolfo tentou se
desculpar:
—
Não, não. Me perdoa, Dona Marilda e seu Geraldo. Eu sei que eu estou errado. Ó!
Voltei pro canal da baixaria para a senhora. Podem ver o programa de vocês. Eu
vou trabalhar no meu quarto, com licença.
—
Mas eu concordo com você, Astolfo. Os programas de hoje estão uma baixaria só.
Estão insuportáveis. Colocar criança para fazer dança sensual no poste é um
atentado contra a moral e os bons costumes. Disse, seu Geraldo, militar
reformado, apoiando o genro, tentando quebrar o mau clima.
—
Eu também não discordo de você, meu filho. Mas não tem nada para ver na
televisão. Pode desligar.
—
Não, não, não. Me perdoa mesmo. Pode ver o seu programa. Disse, quase se
ajoelhando para se desculpar.
Abatido
consigo mesmo por ter aborrecido os sogros, Astolfo se retirou da sala, com a
sua bengala, sob o olhar revoltado de Mariana. A televisão continuou ligada.
No
quarto, tentava se concentrar no artigo sobre poluição sonora que precisava
entregar para uma revista, mas era incomodado por gritos estridentes de crianças
que brincavam na portaria do prédio. O remorso que sentia pelos sogros já
atrapalhava a sua concentração. Estressado, chegou à janela e gritou:
—
EI, DÁ PRA VOCÊS CALAREM A BOCA AÍ???? ESTÃO PARECENDO MARITACAS! NO MEU TEMPO
CRIANÇA BRINCAVA, MAS NÃO FAZIA TANTA ALGAZARRA!
Da
sala, Mariana ouviu, já prestes a explodir, a mais uma reclamação do marido.
Ficou quieta até ouvir o sinal sonoro de um caminhão em marcha a ré manobrando
no hospital ao lado do prédio onde moravam, em seguida Astolfo gritar com o
motorista e jogar um copo de vidro pela janela. Desabafou com os pais:
—
Eu não aguento mais. Eu vou me separar do Astolfo. Se com trinta anos ele já
tem cabelos brancos, anda de bengala e está se comportando como um velho gagá, imaginem
quando chegar aos sessenta!
0 Comentários