RANCOROSO


Conto de Gustavo do Carmo


Nunca foi agredida pelo marido, fosse verbal ou fisicamente, mas Rafaelle estava insatisfeita com o seu casamento.  Lucas chegava tarde do trabalho, sem dar nenhuma satisfação. E em todos os sábados ia ao futebol com os amigos e também só chegava à noite. Descobrir uma traição era só o que faltava para fechar o clichê do casamento infeliz.

Não queria se vingar do marido. Pelo contrário. Pensava em apimentar o casamento com uma traição da parte dela. Estivesse sendo traída ou não. Decidiu procurar um amante. Descartou, de imediato, garotos de programa. Queria alguém que conhecia. 

Correu para a sua rede de contatos. Em uma rede social procurou por ex-colegas de faculdade, pós-graduação e trabalho. Teve a decepção de descobrir que mais da metade da centena de homens com quem estudou ou trabalhou era casada e fiel à esposa. Outros cinquenta não responderam. Somente um deu retorno: Nestor, o cara mais estranho da faculdade. 

Nestor era tímido. E também muito bobo. Soltava opiniões e fazia brincadeiras infantis. Pelas costas, todos falavam que ele tinha idade mental de uma criança de nove anos, metade dos dezoito que ele tinha na época da graduação. Não eram brincadeiras maldosas, mas inocentes. Mesmo assim e sendo respondida com um tom seco do antigo colega, que disse: “O que você quer comigo?”, Rafaelle não desistiu. Já tinha o endereço dele no chat.  


Nestor só apareceu online no dia seguinte e os dois ex-colegas começaram a conversar.

*Rafinha Linda diz: Oi, Nestor.
* Nestor Araújo diz: Fala.
* Rafinha Linda diz: Eu queria te ver pessoalmente. Vamos marcar um encontro. Pode ser?
* Nestor Araújo diz: Pode. Você escolhe o dia e o local, e eu o horário.
* Rafinha Linda diz: Pode ser no sábado?
* Nestor Araújo diz: Se for sábado à tarde, pode.
* Rafinha Linda diz: Ok. Sábado à tarde. Início da tarde no Barra Shopping, pode ser?
* Nestor Araújo diz: O shopping vai estar muito cheio. Será véspera de Dia das Mães. Pode ser em Ipanema?  Na orla?
* Rafinha Linda diz: Então, tá. Combinado.

Nestor rapidamente ficou offline sem sequer se despedir. A vontade de desistir já estava aumentando. Tentou mais uma vez. Foi ao encontro com o seu mais novo vestido vermelho, curto, justo e decotado, que só não mostrava os seus seios porque eles eram pequenos. O ex-colega compareceu de calça jeans e camiseta. Seus cabelos estavam grandes, despenteados e a barba por fazer.  Já estava arrependida de ter feito o que fez.

Rafaelle o encontrou sentado no banco do calçadão da praia, folheando uma revista de carros que acabara de comprar na banca de jornal na esquina em frente. Ele sempre gostou de carros. E era o único na faculdade que gostava disso. Ficava sozinho lendo as revistas que comprava nos arredores do campus. Dava até pena.

Além do hábito de leitura, reconheceu-o pelo estilo de roupa (sempre jeans e camiseta) e gestos  porque pela silhueta já estava gordo. Até seu rosto já estava ficando inchado. Ele não usava mais óculos fundo-de-garrafa. Só óculos de sol. E estava um dia lindo. Ela parou na sua frente e o chamou com simpatia.

— Nestor?

 Sem esboçar nenhum sorriso, ele apenas respondeu, olhando apenas discretamente para o seu rosto e guardando a revista na mochila.

— Oi.
— Há quanto tempo!
— É. E por que não me procurou antes, então?

Além da frieza, Rafaelle sentiu o primeiro ataque de sinceridade. Não retrucou, apenas revirou os olhos e o convidou.

— Bem, vamos almoçar? Conheço um restaurante aqui no bairro que é muito bom.
— Só não pode ser muito caro.
— Pode deixar que eu pago.

Caminharam em silêncio pelo calçadão e atravessaram a pista até o tal restaurante, que ficava na Prudente de Morais. Nestor não queria conversa nenhuma enquanto Rafaelle ficou com medo de levar outro fora. Mas precisava quebrar o gelo. Já estavam acomodados na mesa, que ficava na varanda do restaurante, quando ela decidiu puxar assunto.

— Você tem falado com o Ricardo?
— Não. Ele não me procura e eu também não procuro. Se quiser saber dele fale com ele e não comigo.

A paciência de Rafaelle enfim foi embora. Primeiro se manifestou educadamente.

— Nossa, quanto rancor!
— Olha quem fala!

Enfim, ela estourou.

— Vem cá! Você está com raiva de mim? Tem me tratado tão mal desde que eu te procurei na internet. Foi frio no chat. Não deu nenhum sorriso aqui na praia. Parece até que está decepcionado em me ver. E já me deu uns quatro foras hoje.
— Com você e com todo mundo da nossa faculdade.
— Mas o que foi que eu fiz?
— Da última vez que conversamos pelo chat, você brigou comigo quando eu te perguntei por que você nunca me chamava para conversar. Me julgou pelo meu comportamento! Jurei nunca mais te procurar!
— Me perdoa, vai? Eu estava nervosa naquela época. O meu namorado, hoje meu marido, estava com ciúmes. Precisei me afastar.
— Agora não adianta mais! Fiquei muito mal. Fiquei muito envergonhado! Virei um pária não só para você, como também para o resto da turma! Todos os nossos colegas me recusaram no Facebook. Com certeza, a turma inteira da faculdade foi recomendada para não manter amizades com gente fracassada e pessimista como eu! O Ricardo nunca mais me procurou. E não adianta me perguntar se eu o procuro porque procurei muito! E até demais! E ele sempre dava uma desculpa! Vocês são muito hipócritas, preconceituosos e esnobes!
— E por que você aceitou sair comigo agora? Estou me sentindo uma idiota ter vindo toda sensual pra você e ser maltratada. Eu queria trair o meu marido com você, seu babaca!
— É que eu queria dizer tudo isso na sua cara!

Ela se levantou e furiosa descarregou, chamando a atenção dos outros frequentadores.

— E você? Você é mimado, infantil, imbecil e rancoroso demais! Não desisti de me encontrar com você porque também queria dizer tudo isso na sua cara! Vá se foder, então!

Rafaelle deixou Nestor sozinho no restaurante. Voltou para casa, na Barra da Tijuca, doida para reencontrar o marido. Ela não precisou de um amante para apimentar o seu casamento. O rancor do ex-colega de faculdade já serviu para isso. Enquanto ele perdeu mais uma chance de ser feliz e ter amigos.

  

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