Em um
sebo imundo e escuro na Praça Tiradentes, cercado por revistas antigas e
empoeiradas, Evair agachou-se muito de mau jeito para folhear as raridades que
estavam ao pé da estante, praticamente no chão. Tinha que encontrar, entre duas
pilhas de quase um metro de publicações com mais de quarenta anos, reportagens
ou anúncios sobre uma loja de eletrodomésticos existente na época, já extinta
atualmente.
Evair pesquisava para a monografia de conclusão do seu curso de publicidade.
Prometeu ao orientador produzir um histórico sobre a empresa e ressuscitá-la
ficticiamente, elaborando um plano de marketing completo, desde o planejamento
até a criação das novas campanhas publicitárias, novos layouts, etc, além de traçar
as estratégias de mídia.
Não achava nada. A rede de varejo parecia existir só na cabeça dele, embora
fosse muito famosa. Acabou se distraindo com as pérolas que encontrava no
acervo. Viu logomarcas antigas de grandes empresas. Descobriu uma empresa que
parecia ser nova, mas já tinha mais de setenta anos. Encontrou entrevistas de
celebridades mortas há anos contando os seus planos para o futuro. Localizou
atrizes que hoje são avós, iniciando a carreira com rostos virginais, assim
como jogadores de futebol, há muito tempo aposentados, frágeis de tão novatos,
mas já posando no time campeão. E até princesas, hoje entrando na meia idade,
nascendo.
Aliás, falando nisso, achou uma revista, cuja matéria de capa mostrava um parto
em detalhes, documentado em fotos bem grandes. Da preparação do enxoval,
semanas antes do nascimento, até o bebê ser entregue, pela enfermeira, à mãe de
primeira viagem.
A revista era dos anos sessenta. A gestante parecia ser uma modelo fotográfica
ou atriz de fotonovela. Branca, cabelos lisos, negros e presos naquele coque
clássico, com franja e uma mecha caindo para o rosto, maquiagem da época tão
pesada que a sombra e os cílios, aparentemente postiços, pareciam esconder os
seus lindos olhos verdes. A não ser pela protuberância da barriga, seu corpo
era magro e estava protegido pelo vestido tubinho lilás. Evair não leu a
reportagem, mas acreditou ser, de fato, uma modelo e atriz porque fazia tantas
caras e bocas, principalmente na hora da anestesia.
O pai do bebê só aparecia de terno e gravata. Era um homem claro, de cabelo com
corte quadrado - típico daquela década - e físico forte, mesmo se estivesse sem
o traje social. Devia ser bem rico, pois a casa do casal, mostrada no momento
da saída para a maternidade, era grande, bela e havia um jardim esmeraldino.
Evair deixou a monografia de lado e concentrou-se na leitura da matéria. O
texto confirmou tudo o que ele acreditava. A mulher era uma modelo fotográfica
de reclames publicitários em revistas e jornais. Casou-se com o diretor de uma
petrolífera francesa instalada no Brasil. A revista ainda trazia as fotos dos
pais do marido, um casal aparentando setenta anos, que provavelmente já deve
ter morrido, e da mãe da moça. Os futuros avós paternos tinham cabelos
grisalhos e estavam sorrindo. O senhor ainda ostentava um ralo bigode branco,
enquanto a senhora usava aquele coque tipo coroa. Já a avó materna tinha o
mesmo penteado da filha. Era mais nova que a mãe do rapaz. A cor dos seus fios
eram castanhos claros, que a deixavam com uma aparência de sessenta anos. No
final da foto-reportagem, todos posaram felizes com a criança recém-nascida no
colo. Pela legenda, a modelo tinha dado à luz um menino.
Evair, a partir de então, ficou extremamente curioso para descobrir como
estaria esta família feliz nos dias de hoje. Calculou que o bebê já estaria com
uns quarenta anos. Deve ter sido uma criança rica e mimada, mas alheia aos anos
de chumbo daquela década de setenta. Adolescente, teria ido ao Rock in Rio I
com um grupo de amigos, entre eles uma bela menina e a beijado ao som de Love
Of My Life, de Freddie Mercury. Talvez casou-se com ela alguns anos depois, já
formado em administração de empresas e milionário como o pai. Deve ter sofrido
um pouco com o confisco da poupança em 1990, mas se recuperado com o Plano
Real.
Na pior das hipóteses, pode ter sido um adolescente rebelde que brigou com os
pais e fugiu de casa nos anos oitenta. Amadureceu, arrumou um emprego simples,
foi crescendo, abriu um comércio na zona norte ou na baixada fluminense e leva
vida de classe média, lutando com o filho mais novo, que quer ser artista, para
assumir o negócio.
Evair separou a revista com o nascimento do bebê, guardou as outras revistas na
estante e levantou-se. Foi até o balcão e a comprou por dez reais. Colocou-a em
baixo do braço e seguiu em direção ao ponto de ônibus. A monografia já estava
esquecida na cabeça. Ficou obcecado pelo paradeiro atual do casal feliz, seu
bebê e seus pais. Pegou o coletivo.
Agora pensa que a bela modelo pode ter morrido de alguma doença incurável. O
pai, ou já se casou novamente com uma mulher mais nova, ou criou o filho
sozinho, assumindo também o papel da mãe. Pode ter acontecido o contrário. O
menino também poderia ter brigado com o pai ao assumir-se gay e o rico diretor
da empresa petrolífera teria expulsado o filho de casa.
Evair chegou em casa. A primeira coisa que fez foi procurar o sobrenome da
família na internet. Diante de dezenas de milhares de respostas, decidiu
pesquisar pelo repórter e o fotógrafo da revista, já que a publicação não
existe mais. Era impossível ligar para os telefones da redação anunciados no
expediente, pois os números ainda eram de seis dígitos.
Correu até a faculdade e perguntou para um professor de jornalismo se ele
conhecia o repórter ou o fotógrafo que fez a matéria. O professor disse que
não, mas conhecia o editor da revista. Já falecido. Evair ainda insistiu se ele
conhecia a família do tal editor, mas o catedrático afirmou que não tem mais
contato com os filhos dele.
O jovem estudante decidiu procurar na biblioteca o nome de cada um dos
funcionários da revista. Quando estava no computador, foi abordado por seu
orientador, que lhe perguntou como estava indo o trabalho.
— Estou pesquisando, professor.
O orientador vê a revista sobre a mochila de Evair e pergunta:
— Que revista é essa?
— Ah, eu achei uma matéria interessante nela e me bateu uma curiosidade para
saber como está esse bebê que nasceu na reportagem de capa.
O professor era compreensivo, mas reclamou:
— Fala sério, Evair! Você precisando fazer o seu projeto experimental e ainda
fica preocupado com uma reportagem qualquer? Para que você quer saber disso?
Deixa pra descobrir depois de entregar o projeto, pôxa! O tempo está passando e
até agora você não me apresentou nem o projeto de monografia.
— O senhor tem razão, professor. Vou me concentrar no nosso trabalho.
Enquanto o orientador se levantava para ir embora da biblioteca, Evair pergunta
se ele conhecia algum dos jornalistas da tal revista. O professor deu o
telefone de um amigo que trabalhava na publicação. Imediatamente, Evair ligou
do seu celular, mas ninguém atendeu.
A busca pelo paradeiro do bebê tornou-se uma obsessão. A monografia da
publicidade acabou ficando em segundo plano. Evair já não dormia mais. Passava
horas pesquisando pelo repórter Alanílson Guedes ou pelo fotógrafo Genival
Pedreira. Visitando as redações de todos os meios de comunicação da cidade,
descobriu o telefone de um ex-estagiário da revista. Ligou para o agora senhor
em um péssimo momento: ele havia acabado de falecer, fulminado do coração.
Desistiu de encontrar os jornalistas. Concentrou-se na família. Procurou a
petrolífera onde o pai do bebê trabalhava. Descobriu o histórico de toda a
diretoria da empresa. Achou o nome do empresário, mas não obteve maiores
informações por motivos de segurança. Procurou pela agência da modelo, mãe do
bebê. Nada encontrou.
Enlouqueceu. Já não dormia mais em casa. Seus pais se desesperaram com tanta
preocupação. Um dia, depois de tanto andar em busca da família ou dos jornalistas,
dormiu no Passeio Público. Foi acordado por um catador de papel. Evair estava
tão alucinado que perguntou ao catador se ele conhecia o jornalista, o
fotógrafo, o empresário, a modelo ou qualquer outra pessoa que lhe pudesse
ajudar a encontrar o bebê da reportagem. Mostrou a revista que, de tanto ser
folheada, já estava mais velha do que quando a encontrou no sebo.
O catador engoliu em seco, tentou segurar a lágrima nos olhos e respondeu com a
voz embargada:
— Sou eu. Nasci rico e tive até o meu parto acompanhado pela imprensa. Só que
cinco anos depois, o José foi demitido da distribuidora de gasolina. Começou a
beber e a jogar. Fomos morar no subúrbio. Alcoólatra, esse monstro começou a
bater na minha mãe. Um dia, descobriu que eu não era o filho dele. Não bateu
nela. Matou de vez com um tiro no pescoço. Foi preso. Morreu de cirrose na
cadeia. A minha mãe era filha única. Minha avó morreu de desgosto. Os pais
daquele homem já eram falecidos na época do crime. Meus tios não quiseram me
cuidar por eu ser bastardo. Fui para o orfanato. Fiquei jogado lá, não me deram
estudo e saí de lá quando fiquei adulto. Não me deram nem emprego depois que eu
cresci. Comecei a catar papel para sobreviver.
Evair ainda teve tempo de perguntar pelos repórteres que fizeram a matéria. O
catador de papel se descontrolou:
— NÃO ME FALE DAQUELES SAFADOS!!!! QUANDO PRECISEI DELES NUNCA ME DERAM A
MÃO!!!! AINDA BEM QUE JÁ MORRERAM!!!!
Evair ouviu tudo o que queria. Acordou na biblioteca da faculdade, acariciado
por Gisele, sua colega de faculdade e namorada. A moça viu a revista antiga com
o bebê na capa e perguntou intrigada:
— Onde você achou a revista que mostra o nascimento do meu pai?
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