FESTA DE ARTISTA


Conto de Gustavo do Carmo

Como condição para perdoar o amigo virtual, Charles exigiu que Marcos indicasse os seus contos para produtores de cinema, TV ou teatro. Marcos já tinha feito isso. Vendeu a ideia para uma conhecida atriz. Só que não pediu autorização para o verdadeiro autor e ainda ficou com o todo o dinheiro. Como a tal atriz fez várias modificações na história que Charles tinha descartado, não ficou caracterizado plágio.

Charles ficou revoltadíssimo e impotente. Não tinha amigos e nem advogados influentes como Marcos. Por isso, desistiu de processar, com medo de perder a causa e ficar mais pobre do que já era. E se reclamasse, Marcos ainda ia querer virar o jogo, com todo o cinismo, se fazendo de vítima, acusando Charles de má-fé, oportunismo e inveja.

De fato, foi uma inveja que motivou o rompimento da amizade pelo bate-papo na internet entre Charles e Marcos. Este tinha sido indicado para trabalhar em uma produtora de cinema, a princípio para produzir alguns documentários, enquanto o amigo inseguro tinha que aguentar a mãe reclamando das coisas da casa e o pai tossindo como um tuberculoso por causa do cigarro.

Charles exigiu que Marcos lhe arrumasse um emprego na produtora assim que o outro anunciou que fora contratado. Depois insinuou, antes de descobrir o conto roubado, que o novo produtor teria plagiado outros textos (que Charles sempre enviava para Marcos revisar) e usurpado com facilidade do emprego que o fracassado tanto sonhou, enquanto tinha distribuído currículos e textos por e-mail para uma lista de produtoras. Todos sem resposta e com risco de serem copiados. Não sabia que estava certo. Mas no momento estava errado. Tinha se precipitado, pois Marcos ainda nem tinha começado a trabalhar na produtora.

Pensou em pedir desculpas, mas desistiu. Achava que se desculpava demais. E além disso, já estava irritado com outras atitudes de Marcos, como as falsas notícias de sucesso de outros desafetos de Charles que ele fazia questão de dar. Isso o irritava, o deixava ansioso. E Marcos sabia disso muito bem. Então, fazia por maldade. Por sadismo.

 Outro motivo foi a falta de assunto. Charles era chamado de mimado toda vez que ganhava alguma coisa da família, como um presente ou uma viagem. Charles estava se sentindo infantil perto de Marcos, que podia comprar o que quisesse e viajar a trabalho. Charles decidiu romper a amizade.

Veio o caso do plágio do conto. Era uma história sobre três irmãos completamente infantis. Charles tinha certeza de que a culpa era de Marcos porque este foi o único que lera o conto antes dele publicar no seu blog. Inicialmente Charles tinha desistido da história por achar muito vergonhosa. E Marcos sabia disso. Por isso, vendeu o texto sem registro (outro motivo pelo qual Charles desistiu de processar). Ficaram mais de um ano sem se falarem.

Veio o aniversário de Charles. Como uma forma de limpar a consciência, Marcos ligou para o amigo virtual com quem estava rompido. Estava devolvendo a gentileza que Charles havia feito seis anos antes, quando os dois também estavam brigados. Charles mandou um e-mail desejando felicidades e pedindo desculpas. Ambos fizeram as pazes.

Desta vez, o gesto partiu de Marcos. Mas não foi fácil. Charles exigiu que os seus contos fossem indicados para produtores de cinema, TV ou teatro. E ainda fez questão de participar das gravações. Ele não queria mais trabalhar. Com 35 anos e desempregado, já se achava muito velho para aprender e enfrentar patrão mais novo do que ele.

Contrariado, Marcos concordou. Mas disse que ia demorar. Charles, então, pediu para que fosse procurado apenas quando tivesse a proposta. Felizmente, o contato veio rápido. Na semana seguinte, Marcos o chamou para conversar pessoalmente e lhe apresentou um diretor interessado em produzir um filme sobre o melhor conto que Charles escreveu. Sobre um homem e seus filhos indecisos.

Apesar de todo o "sincericídio" de Charles, o conto foi adaptado e o filme produzido. Charles e Marcos pouco se falavam. Aliás, Marcos boicotava o ex-amigo virtual, combinando de não ir às gravações quando Charles estava presente ou, quando não tinha jeito, esnobava ou tratava o conhecido da internet com frieza.

Animado, Charles, que participou do roteiro, mas odiava festas, resolveu ir à festa de lançamento do filme na casa do diretor. As filmagens demoraram um ano. A pós-produção três meses. Compareceram diversos diretores, atores e atrizes.

 Marcos foi, mas nem cumprimentou o amigo virtual, que ficou totalmente deslocado. As celebridades esnobes nem chegaram perto de Charles. O anfitrião só o apresentou a uma bonita psicóloga, mas aparentando sessenta anos. E a música que tocava era alta demais. Não dava para conversar.

Foram para um lugar mais reservado, na varanda, e Charles se decepcionou porque ela era muito intelectualizada. Só queria saber dos rumos da política do Oriente Médio e da atuação das UPPs nas favelas do Rio. Assuntos que ele detestava. Pediu licença e fugiu da senhora.

Revoltado com a pausa na festa para um comício comunista, foi procurar o diretor para se despedir educadamente. No caminho, já ao som de funk proibidão e altíssimo, passou por um grupo de homens e mulheres se jogando nus na piscina, por um grupo de atrizes fazendo quadradinho de 8, um casal gay fazendo sexo explícito, uma orgia e um homem musculoso espancando uma mulher. Cenas que Charles fingiu ignorar, mas com as quais já estava enojado.

Foi chamado por Marcos.

— Ô, Charles!  Junte-se a nós.

Virou-se e viu o ex-amigo virtual num grupinho com o diretor, o produtor e os atores do filme, sentados no sofá, atrás de uma mesa de centro cheia de taças de champanhe e um punhado de pó branco sobre uma placa de acrílico. O diretor segurava um canudo e tinha um bigode branco de pó. A atriz principal já estava com os olhos virados e a coadjuvante tendo convulsões. Marcos fumava um cigarro de maconha e já estava praticamente doidão.

Explodiu revoltado:

— Eu não vou me tornar drogado porra nenhuma! Eu tenho caráter! Eu tenho princípios! A vontade que eu tenho é de denunciar todo mundo nessa festa para a polícia! Se para ser famoso é preciso cheirar e se prostituir eu prefiro ficar na minha vidinha simples de classe média baixa. Fodam-se todos vocês!

Charles deixou a festa, empurrando o garçom e derrubando a bandeja com algumas carreiras de cocaína e um canudo sobre suas mãos. Nunca mais falou com Marcos, que se transformou no novo “deus” do cinema nacional, ganhando muito dinheiro, viajando pra caramba, fazendo o que gosta e esnobando muitos jovens cineastas, se dizendo vítima de perseguição quando eles queriam apenas mostrar seus roteiros.

O filme sobre o conto de Charles foi cancelado e ele jamais foi chamado para produzir, roteirizar, trabalhar e muito menos ter uma história sua encenada ou filmada. Foi plagiado outras diversas vezes. Enforcou-se pobre e sem amigos, mas com dignidade.  

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